Por nosso parceiro: Bruno Chapadeiro Professor do PPG em Psicologia da Saúde – UMESP
Mr. Sr. Love Daddy, o radialista de Samuel L. Jackson no filme “Faça a coisa certa” (1989) de Spike Lee dá início a essa magistral obra fílmica agradecendo em sua locução, a todo/as o/as negro/as da música estadunidense “por tornarem nossas vidas um pouco mais brilhantes”.
30 anos depois, o rapper Childish Gambino (nome musical do ator Danny Glover) lança o clipe “This is America” (2018) demonstrando que a situação da população negra nas Américas liga-se historicamente mais ao final do filme supracitado do que a seu começo. O corpo negro canta, dança, porém é antes de tudo, um corpo social e político. Vide a apresentação da cantora Beyoncé na final da liga de futebol americano, o Super Bowl em 2016, quando ao entoar sua música “Formation”, incluiu uma performance que homenageava o movimento político dos Panteras Negras.
A canção possui letra inspirada no descaso do poder público dos EUA à época do Furacão Katrina que atingiu principalmente estados de maioria preta e pobre como o Alabama, Mississipi e Nova Orleans. O clipe da referida música traz em sua fotografia dizeres pichados num muro: "Parem de atirar em nós", em clara referência às costumeiras ações de genocídio da população negra por parte do Estado. Algo que fica nítido com o recente caso de George Floyd, um rapaz negro que foi subjugado e brutalmente assassinado por um policial branco em Minneapolis. Por aqui no Brasil, nada diferente. A política perversa da “guerra às drogas” e de controle dos territórios são iniciativas corriqueiras de se ganhar o imaginário popular, a partir de uma ideia de alusão à paz. Franco (2014) já evidenciava que não há “guerra” nesse processo, mas sim, uma política de exclusão, massacre e punição de pobres conquanto os proventos das classes dominantes aumentam e se diversificam.
Nessa “guerra”, só quem tem sido abatida é justamente “a carne mais barata do mercado”, a carne negra: Amarildo, Claudia, Agatha, Marcus Vinícius, João Pedro... Contudo, há também outras maneiras de se matar uma população, que vão além dos tiros de uma arma. Condená-la à miséria é uma delas. O racismo estrutural é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. Para Mbembe (2018), a necropolítica instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente sobre a vida. Almeida (2018) diz que a justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade e as mazelas econômicas antes destinadas aos habitantes das colônias agora se espalham para todos os cantos. Desde a transformação da escravidão, como forma de organização da produção em fato social após a guerra contra Palmares, diversas foram as propostas para se ‘reformar’ a relação entre senhores e escravos com o objetivo de diminuir as tensões sociais. Nesse contexto histórico, pesquisas como as de Eugênio (2016), que estudou relatos, sobretudo de médicos, evidencia uma estratégia de persuasão do público (vê-se tratar-se de uma tática antiga já), como uma forma de produzir comoção e, desse modo, cooperar para ‘reformar’ a escravidão em meio ao seu processo gradual de abolição.
Garcia (1989) nos diz que havia um modelo de medicina veterinária à época que tinha a função de manter a saúde do “patrimônio escravo” por meio do trabalho forçado. O racismo colonial tem nefastos efeitos psíquicos na saúde mental da população negra até os dias atuais. Algo já bem discutido por autores(as) da Black Psychology, como Fanon (2008), Memmi (1977), Nobles (2009), Bicudo (1972), Sousa (1983), Veiga (2019) e Nogueira (2019). Inclusive, Silva (2009) aponta que no pós-abolição e no início da república, diante da opção deliberada em não fazer do/a negro/a a mão de obra assalariada - expressa na deliberação política de “importar” mais de 4 milhões de europeus com vistas a constituir a nascente classe operária brasileira - a condição de abandono social a que foram relegados o/as exescravo/as e seus descendentes e todos os agravos que possam ser resultantes disto, marcam a associação entre o uso desregrado de substâncias como o álcool, por exemplo. Algo também já estudado por Akbar (2004). Com forte presença dessa ciência biomédica “esbranquiçada”, Araújo (2007) nos diz que, no Brasil, poucos são ainda os estudos na área da saúde que utilizam a variável raça/cor e, a despeito de alguns deles sinalizarem para a elevada ocorrência de adoecimento e morte da população negra, a explicação apresentada para este fato apoia-se na inserção socioeconômica das vítimas. Ou seja, a autora chama a atenção para o fato de que raça/cor per se não tem sido suficientemente abordada enquanto construto social segundo o qual a cor da pele representaria um importante determinante da falta de equidade entre grupos raciais, de modo que o tratamento diferenciado destinado aos segmentos sociais neste país tem contribuído para que o mesmo seja classificado como de elevado desenvolvimento quando estes indicadores sociais da população branca, e de muito baixo desenvolvimento quando estes referem-se à população negra como também já bem estudado por Carneiro (2011).
Tomemos alguns dados do atual momento de pandemia pela Covid-19 como exemplo: após 2 meses, o Brasil ainda não sabia a cor de 29% dos mortos pelo vírus. A maioria da mortalidade pela Covid-19 é na região Norte e entre preto/as e pardo/as. Este/as são 1 em 4 hospitalizado/as e 1 em 3 mortes no país.
A pobreza mantém a população negra mais afastada dos serviços de saúde e o racismo implícito os exclui dos tratamentos mais eficazes. 11,5 milhões de brasileiros moram em casas superocupadas. Como ficar em casa nessas condições? A desigualdade urbana e a informalidade no trabalho são também maiores na população negra. Informalidade esta que vinha sendo o afã da política econômica brasileira e que teve retração de 2,2 milhões de postos com a pandemia. Para lembrarmos a/os trabalhadora/es da chamada “linha de frente”, a maioria das trabalhadoras domésticas e técnicas de enfermagem são negras. Faz-se coro aqui à saúde pública brasileira com dizeres de Conceição Evaristo: “É tempo de nos aquilombar”. Afinal, tal como afirma Angela Davis: “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. #VidasNegrasImportam ■ ■ ■
Referências:
■ Akbar, N. Akbar papers in African psychology. Tallahassee: Mind Productions & Associates, 2004.
■ Almeida, S. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
■ Araújo, EM de. Mortalidade por causas externas e raça/cor da pele: uma das expressões das desigualdades sociais. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - UFBA. Bahia, 2007.
■ Bicudo, V. A incidência da realidade social no trabalho analítico. Revista Brasileira de Psicanálise. Vol VI, n ¾. São Paulo, 1972.
■ Carneiro, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
■ Eugênio, A. Lágrimas de sangue: A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição. São Paulo: Espaço Alameda, 2016.
■ Fanon, F. Pele negra, mascaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
■ Franco, M. UPP – A Redução da Favela a três letras: uma análise da política de segurança público do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Administração) - UERJ, Niterói, 2014.
■ Garcia, JC. Sociologia e medicina: bases sociológicas das relações médico-paciente. In: NUNES, Everardo Duarte (org.). Juan César Garcia: pensam. Soc. em saúde na Am. Latina. SP: Cortez, 1989.
■ Memmi, A. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. RJ: Paz e Terra, 1977.
■ Mbembe, A. Necropolítica: biopoder, soberania, est. exceção, política da morte. SP: N-1 edições, 2018.
■ Nobles, W. Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. In: Nascimento, Elisa. (Org.) Afrocentricidade: abord. epistemol. inovadora. SP: Selo Negro, 2009. p. 277-298.
■ Nogueira, SG. Libertação, descolonização e africanização da psicologia: breve introdução à psicologia africana. São Carlos: EdUFSCar, 2019.
■ Silva, MVO. A constituição do campo de cuidados relacionado ao uso de drogas no Brasil: valores, ideias e práticas. In: Cons. Fed. Psicol. Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em políticas públicas de álcool e outras drogas. 2. ed. Brasília: CFP, 2019.
■ Sousa, NS. Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
■ Veiga, LM. Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, n. esp., p. 244-248, set. 2019
Texto publicado originalmente no Blog Multiplicadores de Visat (https://www.multiplicadoresdevisat.com/coluna-opiniao)
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